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Memorial de Fachadas

Leitura de texto

"Eu lembro que tinha o trem",

disse uma das meninas que

observava a colagem do mural.

 

Nem eu sequer estava perto de nascer quando os trilhos e a estação foram desativados, em 1970.
Mas as meninas lembram, assim como eu também me lembro, de tanto ouvirmos falar. 
A estação conta a história não de uma casa apenas, mas de toda a cidade que, em outros tempos, vinha mandar notícias pro vilarejo vizinho, esperar chegar alguém ou só mesmo o trem. Na estação era pra onde muitas vezes vinham os meninos carregando uma vitrola, quando a cidade vivia de música. 

As meninas apontaram a casa da amiga, espelhada na fotografia de décadas atrás: "é a casa da Julia! Nossa, ela já estava aí!". Assim como a antiga estação, onde hoje funciona o CRAS, algumas casas resistem junto às memórias de outros tempos.

Zé - Três Ranchos
Descrição da imagem

primeira casa

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Os meninos na estação
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Descrição das imagens

Foto: Celso Custódio

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Leitura de texto

Existem poucas coisas mais bonitas que ver um trem passar, uma delas é, talvez, ver a estação ir embora.

Que logo já vem outra, no entremeio de uma vida que passa fora enquanto o Zé ainda está lá dentro, descalço, pisando em terra

que anda.

Título 1

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segunda casa

Descrição da imagem
Leitura de texto

Quando fui pela primeira até a casa da dona Caca perguntei se ela teria fotos dos pais e ela disse, com um certo descaso, que não, que não sabia de nada de história, de coisa nenhuma, que pra isso eu teria que buscar os irmãos. Por sorte, um deles estava de passagem em Três Ranchos e tinha em casa um único porta retrato com a fotografia do pai, o seu Geraldo Lopes, alto como ele, muito elegante, de pé na frente de uma figueira.

- "Essa está boa, porque nas fotos do papai sempre cortaram a cabeça dele, de tão alto que é".

Era mesmo muito bonita e talvez por isso ele nem tenha reparado que, nessa, cortaram-lhe os pés. Com a foto da foto, pedi à Caca permissão para a colagem, que ela cedeu de imediato.

 

Se emocionou quando viu o pai bem grande na parede e disse "uma pena não ter nenhuma fotografia da minha mãe".

 

Todas as vezes que passei na frente da casa ela estava sentada em um banquinho na porta e,

no último encontro, me disse que todo mundo que passava perguntava quem era o senhor da fotografia:

"É meu pai!" - ouvi ela responder uma das vezes, orgulhosa.

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Nessa casa, construída pelo meu bisavô Eduardo para receber os parentes que chegavam tarde da noite e evitar que se arriscassem pela estrada escura que levava até a roça, moraram depois meus tios-avós Aparício e Dora, o casal da fotografia.
As meninas da estação, animadas com o projeto, me acompanharam até aqui,

até a "casa mal assombrada, minha irmã disse, ainda tem as coisas deles lá dentro". Quando terminei de colar o casal com a vestimenta de um dia solene elas disseram

"ai, eles já morreram? Que medo!".

Pra alguns, o casal na fachada da casa rememora os finais de semana de visita à Três Ranchos quando as estradas ainda eram escuras e mais inóspitas. Para as meninas, alimentam a história mal assombrada, que incita curiosidade e as faz arquitetar meios

de entrar na casa trancada e há anos abandonada. 

terceira casa

Descrição da imagem
Leitura de texto
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quarta casa

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Leitura de texto
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A casa do George foi antes a casa do seu Luis Horta, seu avô, uma das figuras mais importantes da história da cidade - se não a mais. Seu Luiz Horta, graduado em química, foi pra Três Ranchos como enfermeiro da equipe que construiu a estrada de ferro, entre 1930/40, e decidiu ficar. Abriu farmácia, virou doutor por notório saber, vereador e depois prefeito. 
O George conviveu com o avô até os 7 anos, mas diz que se lembra bem dele. Guarda a maleta de couro com as fotografias de gente desconhecida, possivelmente de amigos e pacientes do seu Luis. 
Em projetos como este a gente nunca sabe o que esperar das pessoas, que muitas vezes acabam surpreendendo.

O George acompanhou a colagem, serviu suco de tangerina, ofereceu biscoitos, gostou da ideia de fazer um retrato com a família e, no fim, agradeceu: "Que bom que você tá fazendo isso, parabéns pelo trabalho, ficou lindo". 

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Descrição de imagens

quinta casa

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Leitura de texto

A casa onde vivem o Zé Branco e a Ana,

é também e sempre foi um bar, um dos mais famosos da cidade cheia deles.

Meu primo José Luiz conta que nos finais de semana, há décadas atrás, faziam uns pagodes lá. Havia dois "clubes" de dança, este e o da dona Maricota. No da dona Maricota, frequentava um pessoal mais “bem nascido”, e por isso era chamado de "pó-de-arroz". O outro, onde é hoje o bar do Zé Branco, era antes do Manoel Custódio, e tinha a alcunha de "BHC", por conta da frequência das classes menos favorecidas. O apelido maldoso vem de um inseticida de mesmo nome.

 

A fotografia na fachada, aqui ao lado,

é de exatamente o mesmo lugar da de agora, onde antes era o bar do Manoel Custódio, mais de 70 anos atrás.

Foto: Celso Custódio

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Descrição de imagens

sexta casa

Leitura de texto
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Na casa da tia Conceição, o retrato dela com minha avó Eunice, de mais de meia década atrás, foi estendido no varal da casa e ela, que gosta de ver, mas não quer mais saber de sair em fotografia, foi muito bem representada pelo filho, meu primo e grande amigo Minga. 
Depois de ter mostrado algumas vezes a imagem enorme impressa no tecido esvoaçante ela finalmente reconhece: "olha, sou eu!". Mostrei outras fotografias que eu tirei nas últimas visitas, dela com meu pai, do meu pai com Titonho, marido dela e irmão da minha avó, que morreu há poucos anos "tão jovem" ela disse, "que bom ver isso, isso é tão importante, né?"

Dei pro Minga o tecido que ele disse que vai esticar no barracão quando estiver pronto.

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sétima casa

Descrição de imagens
Leitura de texto

A cada verão e inverno os meninos - meu pai e tio Eci, quem está nessas fotografias - voltavam pra casa do internato. Para o primeiro conterrâneo que os cumprimentava perguntavam onde estava vivendo agora a mãe, que se mudava de casa a cada estação. Nessa e outras tantas casas morou minha avó Eunice.

Talvez a casa fosse mais bonita na sua forma mais crua e selvagem, quando a Bouganvillea invadia os fios elétricos e as grades do alpendre e a tinta descascada deixava rastros de tantos e tantas que passaram por ali.

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oitava casa

Zé Luiz - Garimpeiros
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Descrição de imagens
Leitura de texto

O diamante atraiu muita gente para as terras ainda desocupadas de Três Ranchos, mas não deixou muito além das histórias. Mesmo os poucos que se endinheiraram, diante de um fazer ainda artesanal, entre cochilos e chacoalhadas na peneira, não escaparam à clássica de perder tudo pouco depois. 

Estas não são necessariamente histórias do garimpo - muito menos dos diamantes -, que hoje tanto devastam o nosso país. São, sobretudo, histórias dos "Pobres Garimpeiros de Riqueza. A Geografia dos diamantes em Três Ranchos": título da pesquisa de dissertação do meu primo Zé Luiz, que traça a rota do garimpo na cidade a partir destes homens que viveram os sonhos afogados dos diamantes. 

Foi o Zé quem me apresentou o compadre Nenzin, que tão gentilmente acolheu as fotografias dos garimpeiros na fachada do Botecão, que, por sua vez, certamente já viu transmutarem tantas pedras de diamante em cachaça.

Nenzin, por sua vez, me apresentou o seu Vicente que me recebeu para contar, bem baixinho, as história do dia que ele encontrou o primeiro diamante, de 3 quilates. O garimpo, assim como a linha ferroviária, acabou em 1982 com a chegada da Emborcação, usina hidrelétrica que conteve o curso do rio Paranaíba na região.

Fotos dos garimpeiros: Celso Custódio

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Vicente e a pedra de diamantes do tamanho de um romã
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Na pequena cidade de Três Ranchos, algumas casas resistem junto às memórias daquele outro tempo,

quando os dias passavam sem que lhes notassem as horas.

Anos depois, no lugar onde um certo progresso veio fazer ruínas, encurralar o rio e interromper os trens,

essas casas contam as histórias dos que um dia abrigaram.

Em algumas dessas casas morou a minha avó Eunice.

Na estação onde parava o trem, uma família espera alguém chegar ou partir,

mas há muitos anos já não chega nem parte ninguém, nem gente, nem trem. 

Leitura de texto

É bem provável que me custe toda uma vida pra dizer e criar tudo que ainda há de Três Ranchos.

Por hora, agradeço mais uma vez, e como sempre, ao meu pai, quem em primeiro lugar me levou até lá e alimentou meu imaginário das estórias que me fizeram querer voltar.

Desta vez, agradeço especialmente ao Zé Luiz e à Iris, que muito além de me acolherem na casa deles, acolheram toda o projeto e se envolveram de todas as formas possíveis: de conversas, ideias, pesquisas, às visitas e colagens, além de passarem o dia respondendo minhas incansáveis perguntas sobre cada detalhe da cidade de dos seus moradores.

Sem eles, nada disso teria sido possível.

Agradeço também à Clícia, quem facilitou a execução do projeto mesmo antes de ele começar, me concedendo a autorização oficial para que ele pudesse acontecer na cidade e também a sugestão de algumas casas que eu pudesse visitar.

Por fim, agradeço imensamente à todos e todas que me abriram suas casas, compartilharam suas fotografias e suas histórias e ajudaram a construir essa de agora, do Memorial de Fachadas.

Este projeto foi contemplado pelo XVI prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia.

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