Certa vez eu nadei tão longe mar adentro que me deram por morta.
Algumas horas depois, apareci em um barquivnho, acompanhada de dois pescadores.
"encontramos essa senhora perdida
algumas ilhas pra lá"
Certa vez minha avó nadou tão longe que atravessou ilhas.
Aos três anos de idade, meu pai me ensinou a nadar.
Minha avó me ensinou a boiar e a dar umas braçadas mais compridas
Quem constrói as casas, 2020-22
Lucília com 2 anos e 7 meses:
- Mamãe, vamos fazer casa igual o papai?
- Eu não sei, Lucília.
- Por quê?
- Não estudei na escola que seu pai estudou?
- É?
- Seu pai é engenheiro. Ele faz casa, sua mãe não é engenheira.
- Só homem que faz casa, não é? (ela andava observando muitas construções)
- Não. Mulher também faz. Mulher que é engenheira.
- É?
- É.
Em algum momento a partir do ano de 1960 minha avó transcreve a conversa que teve com minha tia Lucília. Parto dela para, junto com a minha avó, tentar responder: quem constrói as casas? Quem são, também, as engenheiras?
A casa da minha infância foi construída pelo meu avô, Ruy, e pela minha avó Jacy, uma mulher nascida em mil novecentos e trinta, mãe de quatro filhos, doutora em Sociologia da educação, professora na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de um material didático que, após romper com um conservadorismo que via algo de muito inovador em seu conteúdo, foi usado em quase todo o Brasil. Tanto em casa, quanto na sala de aula ela passou a vida ensinando a ouvir, contar e criar histórias.
O Ruy, apesar de ter sempre apoiado a carreira da esposa, uma vez perguntou: “o que são as historinhas da Jacy perto de quem constrói casas?”
Muitos anos depois, ele se arrepende da pergunta retórica e expressa: “o que são as casas que eu construí perto das histórias que a Jacy criou? Estas são pra sempre, ninguém destrói”.
Na casa se estabelecem também os valores de sonho, que permanecem mesmo quando a casa já não existe mais. Dado o entendimento tardio, o Ruy passou os últimos anos da vida tentando reeditar a Construção do Futuro - um dos livros da coleção escrita pela Jacy - , tarefa que só uma verdadeira engenheira conseguiria cumprir.
Quando eu já tinha idade o suficiente para conversar com a Jacy sobre as coisas que ela pensava e escrevia, já havia começado o seu processo de esquecimento. O Alzheimer foi apagando as memórias recentes, o caminho de casa, os nomes dos netos, dos filhos. Restaram algumas memórias mais antigas, da infância, de outras casas.
Tenho também escutado outras histórias sobre a Jacy, histórias que eu conhecia, em partes, mas que não evocava quando queria me lembrar dela. A casa era também um lugar de violências constantes, verbais e físicas. Desde que me lembro, e acredito que até antes disso, a Jacy tinha o seu salário controlado pelo meu avô. Me lembro muito bem do dia em que, já com seus 70 anos de idade, ouvi ela dizer que teria sido muito mais feliz se tivesse se casado com uma mulher. Diante das violências, das angústias e, por que não, das alegrias, a Jacy nadava.
É importante que essas histórias sejam contadas, lembradas. Mas é ainda mais importante que elas não sejam centrais na história de uma mulher. Eu gosto de me lembrar, sempre, que a minha avó construiu casas.
A casa é o que o sujeito faz dela. Um lugar que abriga devaneios, onde se é possível sonhar; um lugar cuja existência está mais nos afetos e nas estórias, que no rígido concreto. A casa se transforma, fluida, tal como a memória. Depaupera-se, perde o viço, mas permanece viva porquanto haja imaginação, porquanto haja estórias e quem as possa contar.
Este é um livro sobre todas essas coisas, que caminham juntas, na complexa e profunda história de uma mulher que fazia livros, que atravessava ilhas, que construía casas e que sonhava, profundamente.
FOTOLIVRO Quem constrói as casas
2023: Finalista - Prêmio Imaginária (2º lugar)
2022: Finalista - Prêmio Imaginária
2021: Finalista - Prêmio Foto em Pauta